Carta Aberta Rosacruz
Carta Aberta aos Cidadãos e Cidadãs do Mundo
Se decidimos divulgar esta carta aberta, é porque nos pareceu útil e necessário fazê-lo. Naturalmente, estamos plenamente conscientes de que as palavras que se seguem não constituirão unanimidade e gerarão desentendimentos, oposições e até críticas. Com profundo respeito pela liberdade de opinião, damos a todos o direito de fazer seu julgamento à luz de suas próprias convicções. Essas palavras terão, pelo menos, o mérito de alimentar a reflexão de uns e outros.
Para resumir o que pensamos, temos a sensação que a humanidade foi tomada por uma loucura coletiva e que perdeu toda a referência: a mais aflitiva divulgação de tolices, de vulgaridade e de falta de pudor apresenta recordes de audiência; o voyeurismo atinge o auge; tudo faz crer que o sentido da vida é ficar cada vez mais rico e famoso, se possível rapidamente e sem qualquer esforço; a violência, já onipresente na vida cotidiana, é exaltada pela televisão e pelo cinema; os meios de comunicação se sentem obrigados a apresentar aquilo que há de mais sombrio na natureza humana; qualificamos de ‘estrelas’ ou de ‘artistas’ as pessoas cuja qualidade primordial é estar sempre na moda ou agradar uma pseudo-elite; a ‘razão da juventude’ causa grandes estragos; confundimos ‘humor’ com ‘escárnio’; o culto à personalidade só se iguala ao culto do corpo; glorifica-se a grosseria e se estigmatiza o refinamento; a desfaçatez, a impertinência e a insolência são elevados à categoria de virtude, etc.
A crise financeira, econômica e social que o mundo enfrenta há muitos anos tem a ver com o que acabamos de dizer, e seria injusto atribuir isso unicamente à deriva de um sistema financeiro e bancário pervertido. A causa disso tudo está também no desregramento generalizado da sociedade, principalmente nos países que chamamos de ‘desenvolvidos’. Através de uma enxurrada de publicidade muitas vezes enganosa e de todo tipo de crédito, as pessoas são levadas a consumir, custe o que custar, e a fazer do ‘ter’ um ideal de vida, em detrimento do ‘ser’. Na mesma linha de pensamento, faz-se do dinheiro, mesmo virtual, a base de um ‘consumismo’ desenfreado. Embora devesse ser um meio de troca que permitisse a cada um obter aquilo que fosse necessário para viver decentemente no plano material, acabou se tornando um fim em si, deixando de lado qualquer ética. Certamente nunca houve um agente de aviltamento, um vetor de corrupção e uma fonte de desigualdade social igual ao dinheiro. Agindo como um novo ídolo, não tem adeptos apenas nos meios em que reina a ganância e a avareza.
Entre vocês, alguns pensarão que esta constatação é severa demais, e até mesmo negativa demais, e que ela revela uma visão excessivamente pessimista do mundo atual. Outros talvez possam chegar a supor que isso seja obra de ideólogos reacionários em busca da ordem moral. Todavia, nossa filosofia nos inclina ao otimismo e até mesmo ao utopismo. Quanto à moral, damos a ela a abordagem que toda pessoa inteligente e sensata deveria partilhar, pois vemos nela o respeito por si mesmo, pelos outros e pelo meio-ambiente, no que não há nada de moralizador, nem mesmo de moralista. Além disso, achamos que nosso julgamento sobre a condição em que se encontra a humanidade é simplesmente realista. Vamos, portanto, prosseguir, partindo do princípio que você concorda com isso, mesmo que seja apenas parcialmente.
A questão que se coloca é de saber por que o mundo chegou a esse ponto. Pensamos que isso se deve ao fato de ele ter afundado gradativamente num materialismo e num individualismo excessivos. Atualmente, a maior parte das pessoas se comporta como se o sentido da vida fosse obter o máximo de bens materiais e de desfrutar, na medida do possível, de prazeres sensoriais, às vezes até o paroxismo. Fazendo isso, nutrem os aspectos mais egoístas da natureza humana, como os desejos de possuir, de dominar, de aparecer, etc. Da mesma forma, cultivam o individualismo e seu corolário: a exclusão. Por outro lado, o simples fato de crer em Deus ou de se referir a ele se tornou algo ‘laicamente incorreto’ e considerado ‘fora de moda’. Foi assim que o ‘cada um por si’ se tornou uma cultura, e o ateísmo, um modo de vida. Lamentamos profundamente, pois isso vai de encontro ao bem-estar da humanidade.
Se você partilha deste ponto de vista, vai compreender que só existe uma alternativa para se colocar um fim neste espiral ‘infernal’ e devolver à humanidade a esperança de dias melhores: de injetar nela mais humanismo e espiritualidade, a que nos dedicamos através de nossos ensinamentos e de nossa filosofia. Pensamos, de fato, que ambos são pilares sobre os quais a humanidade deve se apoiar para se livrar dessa condição atual e se elevar a um estado de civilização digno de seu nome. Se isso não for feito, a crise generalizada com a qual nos deparamos vai se intensificar e gerar ainda mais dificuldades, provações e sofrimentos. Esse já foi o objetivo que lançamos no “Positio Fraternitatis Rosae Crucis”, manifesto que publicamos em 2001 e divulgamos a nível internacional.
Com ‘injetar mais humanismo’, queremos dizer que se torna urgente (re)colocar o ser humano no centro de nossas preocupações e de (re)colocarmos a seu serviço todos os domínios de atividade humana: economia, política, ciência, tecnologia, etc. De fato, não se pode aceitar, na aurora do século XXI, que milhões de homens, mulheres e crianças morram de fome, não tenham acesso à água potável, não disponham de uma habitação decente, vivam na indigência, não tenham meios de tratar da saúde, trabalhem em condições indignas, não saibam nem ler nem escrever, etc. É preciso parar de confundir ‘viver’ com ‘sobreviver’. Isso tudo é ainda mais triste e lamentável quando lembramos que a humanidade como um todo dispõe atualmente do saber e de meios técnicos que permitem tornar todos os indivíduos felizes. É simplesmente uma questão de vontade.
Com o passar do tempo, os homens criaram um mundo do qual eles mesmos foram se excluindo. Nas sociedades modernas, ficaram tão dependentes da informática e das máquinas, que essas coisas acabaram por substituí-los em tarefas que não são nem úteis e nem necessárias. Conseqüentemente, desumanizaram a sociedade e fizeram dela um espaço de sobrevivência onde a esperança deu lugar à desesperança. Por horas de internet, comunicam-se através de tela, mas não encontram tempo para se falarem. Resultado: poucas pessoas são de fato felizes, e muitas são estressadas, aflitas, deprimidas. Resumindo em uma palavra: infelizes. Certamente, o nível de evolução de uma sociedade não é medido por seu desempenho tecnológico ou por seus conhecimentos científicos, mas pelo bem-estar real de todos os seus membros e pelo prazer que têm de viver juntos.
Como efeito da globalização, país algum, por maior ou mais poderoso que seja, vai poder prosperar daqui para frente sem levar em conta o desenvolvimento dos outros, por menores e mais fracos que sejam. Nesse sentido, o mundo se tornou uma só nação – o que deveria nos alegrar muito - e o destino de todos os homens está interligado. A noção de ‘Cidadãos e Cidadãs’ do mundo não é mais uma imagem mental, mas uma realidade que precisa ser levada em conta para o bem de todos e de cada um. Além disso, no caso de isso ainda não ter acontecido, nós os incentivamos a transcender o individualismo, a superar o nacionalismo e a assumir o conteúdo do artigo 10 da “Declaração Rosacruz dos Deveres do Homem”: “Todo indivíduo tem o dever de considerar a humanidade toda como sua família e de se comportar em todos os momentos e em todo lugar como um cidadão do mundo, fazendo do humanismo a base de seu comportamento e de sua filosofia”.
Mas, ser humanista não é apenas trabalhar para o bem de todos os homens; é também se preocupar com o meio em que vive e ao qual deve sua existência. Mas, você sabe tanto quanto nós, que o planeta corre o risco de se tornar inviável se não colocarmos um fim nos diversos males que o ameaçam (aquecimento global, poluição de diversos tipos, desmatamento excessivo, desequilíbrio dos ecossistemas, etc.). E ainda mais: a humanidade tem a consciência e a tecnologia necessárias para agir dentro do bom-senso, mas não existe vontade tanto no plano individual quanto no coletivo. Com relação às gerações futuras, não temos mais a desculpa de não sabermos ou de não podermos fazer alguma coisa. Nossa inconseqüência é ainda mais grave quando pensamos que a Terra é para os olhos de todos a obra-prima da Criação. Mesmo um ateu tem a tendência a divinizá-la por sua beleza e pelas maravilhas que realiza em seus diversos reinos. Diante de tal consenso, o que estamos esperando para tornar sua preservação uma causa humanitária universal?
Com ‘injetar muita espiritualidade’, queremos dizer que é do interesse de todos os homens fazer as pazes com Deus, no sentido místico do termo. Se esclarecemos que é no ‘sentido místico do termo’ é porque sabemos muito bem que a maioria das pessoas não adere ou não adere mais ao que as religiões - que, é preciso ressaltar, respeitamos - dizem ou disseram. Há séculos, para não dizer milênios, elas O representaram como um Super-homem sediado no céu, de onde decide o nosso destino, inclusive o momento de nossa morte. Por essa abordagem, encorajam os fiéis a se submeterem à Sua vontade e a procurarem salvação nos dos dogmas a que se prendem. Mas, como demonstra a experiência, esse modo de viver a fé não deixa ninguém nem melhor nem mais feliz. Isso explica, em grande parte, porque os crentes se afastam das religiões chegando até a se tornarem ateus. E será que ficam satisfeitos com isso?
Mas, concordando ou não, todos os homens têm uma alma e sua essência é espiritual. É por isso que não conseguem encontrar felicidade no ateísmo ou no materialismo. Rejeitar Deus, como muitos fazem atualmente, é, portanto, um contra-senso que leva a um impasse. O que se faz necessário é repensar a idéia que se tem dEle e agir de forma conseqüente. Do nosso ponto de vista, vemos nEle a inteligência, a consciência, a energia, a força (pouco importa o termo que se use) que está na origem de toda a Criação. Como tal, Ele se manifesta no universo, na natureza e no próprio homem através de leis impessoais, imutáveis e perfeitas. Mas é no estudo e no respeito a essas leis que reside a felicidade a que todos aspiramos. É chegado, então, o momento de passar da ‘religiosidade’ para a ‘espiritualidade’, isto é, de passar da ‘crença em Deus’ para o ‘conhecimento das leis divinas’, no sentido das leis naturais, universais e espirituais.
Mas é preciso que fique bem claro: não se trata de transformar os estados em teocracias ou de adaptar suas instituições a uma abordagem religiosa à vida em sociedade. Nisso, a laicidade é necessária para garantir uma independência mútua entre a política e a religião. Pensamos apenas que, se por um lado, é legítimo para o homem querer melhorar sua condição material, por outro, isso não é suficiente para lhe trazer felicidade. Se estamos aqui na Terra, é para responder a uma exigência espiritual que, cedo ou tarde, incita todo ser humano a conduzir uma busca de sentido. Do ponto de vista místico, nossa presença aqui tem por objetivo essencial tomarmos consciência de nossa natureza divina, e de expressarmos isso em nossa vida diária em nossos julgamentos e comportamento. Em outras palavras, e como ensinava Sócrates já na sua época, estamos na Terra para nos aperfeiçoarmos e despertarmos as virtudes da alma que nos anima. Esta é nossa razão de ser; este é o nosso destino comum.
Certamente, não podemos provar a existência de Deus. Contudo, os homens fazem parte de um universo que são capazes de contemplar e estudar. Isso é necessariamente o efeito de uma causa, pois tudo o que existe tem uma origem. E já que ele é regido por leis que os próprios cientistas consideram admiráveis, conseqüentemente essa causa original é prodigiosamente e absolutamente inteligente. Logo, porque não chamar isso de ‘Deus’ e ver neste último a inteligência universal e impessoal que está na origem da Criação? Por outro lado, considerando que o próprio homem realizou o que há de mais belo e de mais útil dentro das ciências, das artes, da literatura, da arquitetura, da tecnologia, etc.; e considerando que ele é capaz de ter e de expressar os sentimentos mais nobres (amor, amizade, compaixão, admiração, etc.), como é possível duvidar que ele tenha algo de divino, ou seja, uma alma?
Como dissemos no início desta carta, respeitamos as convicções de cada um, de modo que compreendemos que alguns dentre vocês não manifestam mais o interesse pela espiritualidade, no sentido que demos a ela anteriormente, ou pela religiosidade. Por outro lado, a necessidade de instaurar mais humanismo neste mundo deveria ser evidente para a grande maioria das pessoas. Mas existe apenas uma solução para o futuro: é necessário que cada um se empenhe em se tornar humanista em pensamentos, palavras e atos, o que implica em colocar o que há de melhor em você a serviço do bem comum. Finalmente, retornemos à necessidade de despertar e de expressar as virtudes que dão dignidade ao homem, e que atribuímos, no nosso modo de ver, ao que há de mais divino nele.
Não estamos aqui na Terra para sofrer nem para expiar um pecado hipotético original, mas para conhecer a felicidade e evoluir gradativamente para um estado de consciência sempre mais elevado. E se o mundo não vai bem, Deus não tem nada a ver com isso, nem o Diabo, que, diga-se de passagem, não existe. São os erros do próprio homem, que em sua maioria ainda está sob o domínio dos aspectos mais negativos do ego, dando passagem para o egoísmo, a inveja, a intolerância, a violência, etc. Para tornar o mundo melhor, eles devem transcender e aprender a manifestar sua generosidade, o desapego, a tolerância, a não-violência, etc. Como? Esforçando-se para transmutar cada um de seus defeitos na qualidade oposta, até se tornarem seres humanos realizados. É exatamente a essa alquimia espiritual que os Rosacruzes se consagram desde sempre.
Independentemente de nossas crenças religiosas, de nossas idéias políticas e de nossas convicções filosóficas ou outras coisas, trata-se de um fato com relação a que vocês podem concordar conosco: o homem está apenas de passagem pela Terra. Um autor disse que “o túmulo mais belo é o coração dos vivos”. Portanto, que lembrança deseja deixar para os seres que partilharam de sua existência ou que você conheceu? Que herança quer deixar para as crianças de hoje e para as gerações futuras? Que imagem de si mesmo espera levar no momento final de deixar este mundo? Como devem ter compreendido, são respostas dadas a essas perguntas que, na sua consciência assim como em sua alma, determinam o sentido que você dá à vida. São elas também que traduzem sua natureza profunda e a consideração que têm por você e pelos outros.
Na nossa maneira de pensar, achamos que nossa existência não termina com o que chamamos de ‘morte’. Para nós, a morte é apenas uma transição para um mundo puramente espiritual. Ainda mais, muitos de nós estamos convencidos de que todos os seres humanos reencarnam na Terra diversas vezes, para dar continuidade à sua evolução e realizar sua busca de aperfeiçoamento. Assim, o significado que damos à nossa vida condiciona o significado que damos à morte, ao pós-vida e às nossas vidas futuras. Seja como for, vamos convir que é aqui e agora que se constrói o mundo futuro. Se quisermos que ele se conforme às nossas esperanças mais caras e se torne para todos um lugar de paz, de harmonia e de fraternidade, unamos nossos esforços para que surja uma Nova Humanidade, prelúdio de uma Nova civilização.
É isso que queremos submeter à sua reflexão. Estamos conscientes que as idéias que partilhamos com você não têm nada de original em si, mas achamos que elas podem corroborar as idéias de alguns, e incitar outros a se interrogarem. Esclarecemos também que elas não são de fato novas. Os Rosacruzes do século XVII, a quem estamos ligados, já usavam a mesma linguagem. Como testemunho disso, e essa será nossa conclusão, eis o que, Comenius, um deles, considerado atualmente o pai espiritual da UNESCO, declarou na época:
“Queremos que os homens, individual e coletivamente, jovens ou velhos, ricos ou pobres, nobres ou plebeus, homens ou mulheres, possam ser plenamente educados e se tornar seres humanos realizados. Queremos que sejam perfeitamente instruídos e informados, não apenas sobre um ou outro ponto, mas também sobre tudo o que permite ao homem realizar integralmente sua essência, aprender a conhecer a verdade, não ser enganado por falsos pretextos, amar o bem e a não ser seduzido pelo mal, fazer o que deve ser feito e evitar o que precisa ser evitado, falar com sabedoria de tudo em com todos, e nunca se desviar de seu objetivo maior que é a felicidade”.
Se achar que esta carta-aberta pode interessar a pessoas de seu conhecimento, sinta-se à vontade para divulgá-la. Se, ao contrário, não partilhar nem do conteúdo nem da forma, desconsidere-a e pratique em relação a nós uma das virtudes que mais apreciamos: a tolerância.
Desejando-lhes toda a felicidade possível, enviamos a todos os nossos pensamentos mais fraternos e os nossos melhores votos de Paz Profunda.
Sinceramente,
Pela Jurisdição de Língua Francesa da AMORC.
Serge Toussaint
Grande Mestre
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Posto esta carta pois achei necessário uma meditação por nossa parte.
Abraços Fraternos,
Bruxo Branco
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